Na noite do último dia 17 de março (um domingo), o auditório da Associação Scholem Aleichen (ASA), em Botafogo, mais uma vez foi o locus da quarta apresentação da peça ‘K. Relato de uma Busca’, montada a partir de adaptação do livro homônimo do jornalista, professor e escritor Bernardo Kucinski.
Enquanto os espectadores chegavam para a apresentação, a reportagem do Jornal do Sindsprev/RJ conversou com o diretor e ator Jitman Vibranovski. Aos 73 anos e com larga experiência em teatro, Vibranovski falou com entusiasmo sobre o conteúdo do livro e da peça — a história de um pai em sua angustiante busca da filha desaparecida durante a ditadura militar no Brasil — e da proposta de encená-la enquanto um ‘ato de resistência’. “Fazemos cultura dessa maneira, mostrando às pessoas que a política tem relação com todos os aspectos da vida cotidiana, o que é ainda mais importante sob o atual governo, que despreza as manifestações artísticas e culturais”, disse.
Após a apresentação da peça, que aponta a ditadura como uma tragédia de toda a sociedade, e não um problema de ordem individual, os atores do coletivo Militantes em Cena e o público que lotou o auditório da ASA fizeram uma emocionante homenagem à vereadora Marielle Franco (PSOL) e a todos os que tombaram na luta contra o fascismo e a injustiça social. “Aqui o objetivo é encenar e discutir sobre um tema que hoje nos preocupa cada vez mais, que é a volta do autoritarismo. Por isso lembramos o período de trevas que foi a ditadura no Brasil”, afirmaram Crispim Lemos Wanderley e Fátima da Silva Wanderley, atores do coletivo Militantes em Cena.
A seguir, a entrevista de Jitman Vibranovsky.
Jornal do Sindsprev/RJ – por que você escolheu esse tema para uma peça?
Jitman – especialmente por causa do livro do Bernardo Kucinski [K. Retrato de uma Busca]. Além do tema que me interessou muito, sobre um pai que procura pela filha desaparecida durante o regime militar no Brasil, vi que se refere à história da irmã dele, a Ana Rosa Kucinski. O livro é muito teatral porque algumas cenas já estavam praticamente prontas, com diálogos que eu tive de editar e diminuir para que pudesse montar a peça e encená-la. Assim, eu procurei extrair a essência do livro, mesmo sabendo que a peça contém, no máximo, um quarto do conteúdo da obra. Também escolhi fazer a peça com base no livro porque o tema é muito atual, tendo em vista a situação pela qual passamos sob o atual governo e seus rompantes autoritários. Conheci a obra do Kucinski por meio de um livreiro de Belo Horizonte e ainda me lembro muito bem quando li o livro e decidi adaptá-lo. Foi na época em que saiu o resultado do segundo turno da eleição presidencial, em outubro do ano passado. O livro então me ajudou muito a suportar o resultado da eleição.
JS – Existe dificuldade para montar uma peça baseada em livro?
Jitman – Sim, porque na verdade são duas linguagens muito diferentes. No livro, além da relação individual e subjetiva do leitor com a obra, você tem a possibilidade de parar a leitura para refletir e depois retomá-la mais tarde, se assim desejar. Já com o teatro é diferente. Com o teatro é na hora, no momento da representação. Então toda a emoção tem de ser passada durante a encenação, que também tem de passar aos espectadores o que é mais importante do livro, as cenas mais fundamentais. Para quem vai assistir a uma peça, isto tudo tem que estar muito claro. Para mim a experiência está sendo muito boa.
JS – Como surgiu a ideia de constituir o grupo Militantes em Cena?
Jitman – foi a partir da proposta de trabalhar em conjunto com militantes para fazer encenações teatrais acompanhadas de debates. Foi aí que chamei várias pessoas, algumas com experiência de teatro e outras não, para formar o grupo, que fez a primeira encenação de um sketch de minha autoria, o ‘Puta que Pariu, Brasil’, na época em que a presidente Dilma foi golpeada. A história fala de uma família estressada por trabalho intermitente, sem acesso ao SUS [Sistema Único de Saúde], aposentadoria e a outros direitos básicos. Uma família que não sabia o porquê dessa situação. Na história, que teve como inspiração o poema de Bertolt Brecht (‘O Analfabeto Político’), o objetivo foi mostrar que a vida cotidiana tem a ver com a política. Que tudo tem a ver com política. Depois dessa peça, após o fim do governo golpista do Temer, entrou o novo governo, que elogia a ditadura. Então resolvemos fazer a peça sobre ‘K. Relato de uma busca’.
JS – Bolsonaro chegou ao poder fazendo apologia da ditadura e de torturadores como Brilhante Ustra. Como ficamos diante dessa situação?
Jitman – o ovo da serpente já mostra que está se formando uma cultura protofascista, no Brasil e no mundo. Infelizmente essa é a verdade. É uma guerra híbrida que, por enquanto, nós estamos perdendo. E a prova é que o atual governo está entregando todas as nossas riquezas e promovendo um brutal arrocho sobre os trabalhadores, com os cortes de direitos que serão consequência desses ataques. É um governo de ideologia medieval na cultura e na educação. Um governo que fecha as fontes de financiamento para a cultura. Mas felizmente ainda temos espaços como este aqui da ASA [Associação Scholem Aleichen), que apoia as nossas iniciativas. A postura da ASA também prova que existem judeus progressistas, embora não pareça.
JS – Como fazer cultura no Brasil sob um governo que odeia a cultura e que chama de ‘vagabunda’ praticamente toda a classe artística, atacando histericamente a Lei Rouanet?
Jitman – outro dia um motorista me perguntou se os artistas não recebiam 300 mil reais cada um, por conta da Lei Rouanet. Veja só. Isso mostra a intensa campanha que se faz contra a cultura e suas formas de financiamento, campanha baseada em mentiras e desinformação. Daí ser tão importante fazermos o que estamos fazendo agora, pois aqui é um espaço de resistência. A nossa peça, por exemplo, tem entrada franca. Apenas na saída é que os espectadores são convidados a deixar alguma contribuição.
JS – Qual a sua formação em teatro?
Jitman – eu cursei a escola de teatro antes da UniRio, o antigo Conservatório Nacional de Teatro, onde me formei no ano de 1973. Aí comecei a fazer teatro, tanto amador quanto profissional. Atualmente gravo uma novela pelo SBT. Importante frisar que o grupo ‘Militantes em Cena’ é um coletivo amador, mas que nem por isso deixa de se empenhar seriamente nas montagens teatrais às quais se dedica. E olhe que são 13 atores em cena. Esse é o nosso trabalho. A próxima encenação da peça deverá acontecer no dia 28 de abril.