Não há previsão constitucional que autorize a convocação do presidente da República a depor em uma Comissão Parlamentar de Inquérito como a do Genocídio. A Constituição Federal, porém, não proíbe esta possibilidade que pode acontecer caso as acareações entre depoentes que se contradisseram, documentos oficiais e levantamentos obtidos por quebra de sigilo atestem que o presidente Jair Bolsonaro cometeu ilícitos em ações e omissões relacionadas ao combate à pandemia, um dos objetivos centrais das investigações.
Uma das possibilidades que justificariam esta convocação seria a comprovação de que o presidente agiu de forma deliberada, boicotando as normas de prevenção, como o isolamento social e o uso de máscara, recusando-se a contratar vacinas, estimulando aglomerações e a utilização de medicações sem comprovação científica para o tratamento precoce da doença, de modo a propagar ao máximo a contaminação pelo novo coronavírus e atingir a imunidade de rebanho naturalmente. Há farto material comprovando e existência desta política de governo, que levou o país a um número recorde de contaminados e mortos, mais de 444 mil óbitos, atrás apenas dos Estados Unidos, e a ser o 80º em número da vacinados.
Instalada em 27 de abril, a CPI do Genocídio ouviu, até aqui, pela ordem cronológica, os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich; o atual ocupante do cargo, Marcelo Queiroga; o diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres; o ex-secretário de Comunicação da Presidência, Fábio Wajngarteh; o gerente-geral da Pfizer para a América Latina, Carlos Murillo; o ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; e o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.
A CPI tem um depoimento marcado para terça-feira (25/5), da secretária de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro. Depois disso, os membros farão um balanço e vão elaborar um relatório preliminar.
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Apoio à contaminação
Desde março de 2020, Bolsonaro passou a declarar publicamente seu apoio a essa política contrária a medidas de prevenção. E não apenas isto, como já está se comprovando na CPI. Bolsonaro boicotou durante meses a assinatura de contrato de fornecimento de vacinas; receitou, ele próprio, e também o Ministério da Saúde, a partir da gestão Pazuello, medicamentos como a cloroquina e a ivermectina para o tratamento do coronavírus, uma forma de passar para a população o recado de que não deveria se preocupar com a prevenção da doença ou com o acesso urgente a vacinas, pois haveria medicamentos de fácil obtenção para combater o vírus.
Sobre este tema, o primeiro a depor na CPI, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, confirmou a existência de um comando chefiado por Bolsonaro, dentro do governo, paralelo ao ministério da Saúde, que traçava ações contra as determinações oficiais da pasta, como o boicote ao isolamento social e o uso de máscara, e que decidiu orientar a prescrição da cloroquina. Mandetta afirmou, inclusive, que houve tentativa, confirmada à CPI do Genocídio pelo presidente da Anvisa, Barra Torres, deste comando ilegal, de, através da Avisa, alterar a bula da hidroxicloroquina, para que passasse a constar como medicamento voltado para o tratamento precoce do novo coronavírus.
Durante a crise que matou milhares de pessoas em Manaus, o Ministério da Saúde criou um programa chamado TrateCov, que orientava os médicos a prescreverem a cloroquina. Pazuello, em seu depoimento, negou que fosse um programa oficial, e sim um protótipo feito a pedido da secretária de Gestão do Trabalho e Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro. Apelidada de ‘capitã cloroquina’ por sua defesa do uso do medicamento, ela depõe na próxima terça-feira na CPI. Pazuello mentiu. O TrateCov foi anunciado como programa oficial do ministério, sendo, dias depois, retirado do site do órgão.
Boicote à vacinação
Mandetta afirmou, ainda, que Bolsonaro ficou meses sem responder à proposta, feita em agosto de 2020 pelo laboratório Pfizer, de fornecimento de 70 milhões de doses da vacina contra a covid-19. A informação foi confirmada também em depoimento pelo gerente da Pfizer para a América Latina, Carlos Murilo. “Enviamos a proposta, mas o governo brasileiro não nos respondeu”, disse.
A decisão de ignorar a proposta foi ratificada no depoimento feito à CPI pelo ex-secretário de Comunicação do governo, Fabio Wajngarten. Ele disse que soube do fato em setembro de 2020 e que ele mesmo entrou em contato com Carlos Murilo. A resposta de Bolsonaro só foi dada em novembro.
Em seu depoimento, Eduardo Pazuello disse que o governo não deixou o assunto sem resposta, que contactou e negociou com a Pfizer ‘várias vezes’, afirmando que tinha documentos comprovando o que dizia, sem, no entanto, apresentá-los. A contratação somente aconteceu em dezembro.
Bolsonaro defende contaminação
Desde o início de 2020 que Bolsonaro vem defendendo a imunidade de rebanho, afirmando que ela seria alcançada contaminando 70% da população. Repetia o percentual que considerava inevitável e um argumento contra medidas de isolamento social, como fez em 20 de abril: “Devemos falar ao povo: calma, tranquilidade. 70% serão contaminados”; ou, em 9 de maio, durante passeio de moto aquática no Lago Paranoá, em Brasília: “É uma neurose, 70% vai pegar o vírus. Não tem como! Loucura”. Em 11 de maio, questionado sobre o lockdown em Recife: “É pior, pô. O vírus vai atingir 70%. Vocês sempre batem em mim, que falo da questão da saúde”.
Cientistas e médicos brasileiros e dos demais países alertavam que a imunidade de rebanho só poderia ser alcançada através da vacinação em massa de 70% da população. O estímulo à contaminação natural causaria a morte de milhares de pessoas. Contaminar 70% da população significa infectar 154 milhões de pessoas.
Uma política genocida.
Projeção feita pelos médicos e professores Domingos Alves e Mauro Sanchez, da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Brasília (UnB), utilizando uma calculadora que leva em conta a estrutura etária do Brasil e uma taxa de letalidade similar à identificada na China do início de 2020 – onde a pandemia se manifestou num período de tempo bastante concentrado —, aponta que, se 70% da população brasileira fosse infectada, poderia haver 1,8 milhão de mortes.
USP: há prova de genocídio
O Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos, uma das mais respeitadas organizações de justiça da América Latina, fizeram um detalhado levantamento de decretos, ofícios, normativos internos e vídeos oficiais do governo Bolsonaro. A conclusão é a de que existe uma estratégia de propagação do vírus, promovida pelo governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República.
Há intenção, há plano e há ação sistemática nas normas do governo e nas manifestações de Bolsonaro, segundo aponta o estudo. “Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”, afirmam os cientistas sobre o levantamento. “Esperamos que essa linha do tempo ofereça uma visão de conjunto de um processo que vivemos de forma fragmentada e muitas vezes confusa”.
Com a palavra, a CPI do Genocídio.
Para acessar a pesquisa, publicada em martéria do site El País, clique aqui.