Nem todos os acordos entre aliados e pactos entre os três poderes vão ser capazes de deter por muito mais tempo a instauração de um processo de impeachment de Jair Bolsonaro (sem partido), entre outros motivos, e são muitos, caso se confirme que o presidente defendeu mudanças na Polícia Federal, para proteger a família. O posicionamento constaria do vídeo, cujo conteúdo foi entregue pelo governo ao Supremo Tribunal Federal (STF), por determinação do ministro Celso de Mello, responsável pelo inquérito que investiga as acusações do ex-ministro Sérgio Moro de interferência de Bolsonaro na PF. O que, se confirmado, o levaria ao impeachment por crime de obstrução de justiça, portanto, crime de responsabilidade.
Um destes acordos, o chamado ‘pacto pelo Brasil’ está em pleno vigor, blindando Bolsonaro. Foi costurado em reunião num sábado, 16 de março de 2019, na casa de Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, para manter Bolsonaro na Presidência da República, evitando o aumento da instabilidade política causada por seu comportamento apenas aparentemente descontrolado e suas consequências dentro e fora do país. Além de Maia e Bolsonaro, participaram do encontro o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Dias Tofolli.
Segundo noticiou a revista de direita Veja, na ocasião, a ideia de um ‘pacto pelo Brasil’ partiu de Toffoli, ainda em fevereiro de 2019. Seus termos foram acertados em 16 de março, sendo oficializado após almoço em 28 de junho no Palácio Alvorada, com a presença dos presidentes dos três poderes, além do ministro da Economia, o banqueiro Paulo Guedes, o então ministro da Casa Civil, Onix Lorenzoni (DEM) e o ministro do Gabinete da Segurança Institucional, general Augusto Heleno. Segundo declarou Guedes naquele dia, ‘o pacto será construído em comum acordo entre os poderes’. A mídia – na época uma apoiadora cega do capitão – noticiou todos estes fatos como se estivessem dentro da lei e das normas constitucionais, sem a necessária análise imparcial. Ou seja, comportou-se como avalista do acordo. Hoje, paga pela omissão.
Além de Bolsonaro, o ‘pacto pelo Brasil’ previa blindar, à época, a reforma da Previdência que tramitava no Congresso Nacional com uma série de mudanças que feriam de morte a Constituição Federal e poderiam ser questionadas junto ao STF. Aliás, o próprio acordo aconteceu num flagrante desrespeito ao artigo 2º da Constituição Federal de 1988, que prevê a independência entre os três poderes, não permitindo combinações ou pactos entre eles.
A obrigação de defender os preceitos constitucionais cabe ao Supremo que, no entanto, teve o seu presidente como proponente do pacto inconstitucional, um golpe contra a Constituição que deveria defender.
Acordo permitiu avanço do autoritarismo
Bem à vontade e sorridente, vestindo uma camisa de gola polo preta e calça jeans, na sala de sua residência, ao lado dos representantes dos demais Poderes, o presidente da Câmara declarou, naquele sábado, 16 de março, sem ficar vermelho e sem medo de estar pisoteando a Constituição: “Estamos construindo uma forma em que os Poderes possam dialogar melhor, pactuar uma relação de governabilidade para o Brasil, porque no sistema democrático todos governam juntos”, dissertou com naturalidade após o encontro. Depois, satisfeito, posou para fotos ao lado dos presidentes Bolsonaro, Tofolli e Alcolumbre.
Nada escondido, tudo feito às claras. Registrado por fotografias, imagens de tevê e noticiado pelas rádios e textos de jornais.
O ‘pacto pelo Brasil’ está vigorando plenamente. Desta forma, permite que Bolsonaro se sinta protegido e cada vez mais à vontade para avançar na sua postura autoritária, com sérios riscos para a frágil democracia brasileira. Pelo menos 30 pedidos de abertura de processo de impeachment por crime de responsabilidade deixaram de ser respondidos pelo presidente da Câmara. Entre outros motivos, os requerimentos se baseiam nas centenas de declarações e atos contra a democracia, de apoio e participação em protestos pela volta da ditadura militar e do AI-5, por perpetuar crimes contra a saúde pública, ao participar de aglomerações e manifestações, descumprindo e defendendo o fim do isolamento social exigido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde.
Proteção a Flávio Bolsonaro
O mesmo acontece no Senado Federal. No Supremo, Dias Toffoli também cumpre o pactuado. Tem blindado Bolsonaro e sua família, seguindo a mesma linha que levou o presidente a afastar o diretor-geral da Polícia Federal, Alexandre Valeixo, levando o ministro da Justiça Sérgio Moro à demissão. O jornal O Estado de S. Paulo levantava, em junho de 2019, a suspeita do envolvimento do presidente da República com o crime organizado do Rio e com seu laranja-família, Fabrício Queiroz. Queiroz trabalhou como assessor do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) quando este era deputado estadual.
Segundo as investigações, desviou parte dos salários dos empregados do gabinete do parlamentar para uma conta sua. Os promotores do Rio de Janeiro investigavam o caso. Flávio, filho mais velho de Jair Bolsonaro era alvo de um procedimento de investigação criminal aberto desde o ano anterior, com base em relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que apontaram movimentações atípicas do ex-assessor (no total de R$ 1,2 milhão).
Curiosamente, em julho do ano passado, Toffoli suspendeu todas as investigações a respeito do senador e seu ex-assessor baseadas no compartilhamento de dados bancários e fiscais com o Ministério Público sem autorização do Poder Judiciário, como sempre foi feito.
A decisão foi tomada no curso de um Recurso Extraordinário que corria ‘em segredo de Justiça’. Toffoli passou o processo à frente de outros 42 casos semelhantes que aguardavam uma decisão sua nos últimos dois anos. Logo depois, em 19 de agosto, Jair Bolsonaro editou medida provisória (MP) transferindo o Coaf do Ministério da Economia para o Banco Central, passando a se chamar Unidade de Inteligência Financeira, sem a autonomia de antes. Tofolli determinou, ainda, a suspensão de todas as investigações que utilizassem informações do extinto Coaf, beneficiando diretamente Flávio.
Também no ano passado, sobre temas que interessavam ao governo, Toffolli vinha se posicionado favoravelmente. Foi o que ocorreu, por exemplo, em relação à liberação da venda de subsidiárias de estatais sem necessidade de autorização legislativa. Esta decisão tornou mais fácil a venda fatiada das estatais, como desejava o governo. Em perfeita sintonia com Bolsonaro e Guedes, Toffolli tem dado declarações contra a Constituição Federal, um comportamento, no mínimo estranho e que coloca a Carta Magna sob questionamento. O presidente do STF tem como função a defesa da Constituição. Mas tem repetido declarações em sentido contrário. Por exemplo, em 12 de agosto, numa palestra organizada pelo banco espanhol Santander defendeu “desidratação” constitucional.
Mais recentemente, recusou-se a criticar Bolsonaro pela pressão sobre o próprio STF pelo fim do isolamento, com o presidente e seus ministros ‘marchando’, em 7 de maio último, do Palácio do Planalto até a sede do Supremo, numa atitude de intimidação contra o Poder Judiciário. Pelo contrário, Tofolli ‘limpou a barra’ de Bolsonaro, tratando o episódio com normalidade, recebendo-o e aos seus ministros. Se submeteu a Bolsonaro que já havia participado dias antes de várias manifestações contra o STF e o Congresso Nacional.
Apoio ao fim do isolamento
Não satisfeito, Toffoli mentiu para defender Bolsonaro e sua tese genocida de abolir o isolamento social. Chegou a elogiar o governo neste quesito, afirmando, também em 7 maio, que o Brasil conseguiu conduzir “muito bem essa situação” de enfrentamento ao novo coronavírus e defendeu uma ‘coordenação pela retomada econômica’. Apesar da declaração do presidente do Supremo, diversas cidades brasileiras decretaram, naquela semana, estado de calamidade pública durante a pandemia da covid-19. Além disso, estados como Amazonas já enfrentavam colapso do sistema de saúde. E o Ministério da Saúde reconheceu que o pico do novo coronavírus deveria ocorrer entre maio e julho.
Mostrando que o ‘pacto de governabilidade’ está de pé, chegou a aventar a possibilidade de apoiar o fim do isolamento. Toffoli reforçou ser preciso um “planejamento organizado na retomada da volta da economia e do crescimento”. “Isso é fundamental”, avaliou. O presidente do Supremo defendeu uma coordenação com a inclusão de outros Poderes, Estados e municípios, junto a empresários e trabalhadores. “Esse anseio é de trabalhar, produzir, manter empregos e uma sociedade estruturada em funcionamento”, disse Toffoli.
Pactos são inconstitucionais
Os encontros cada vez mais constantes entre Jair Bolsonaro e Dias Toffoli no início de 2019 começaram a incomodar ministros do próprio STF e juízes. Somente nas últimas duas semanas de maio foram três reuniões. Segundo o jornal Correio Braziliente, com sede na capital federal, nos encontros buscavam acertos ‘que evitassem decisões conflitantes com interesses do governo’. Este jogo de cartas marcadas começou a levantar críticas de parlamentares, representantes de entidades de classe e de ministros do Tribunal que viam ameaças à independência do STF, exigida pela Constituição brasileira.
O ministro do STF Marco Aurélio Mello foi explícito quanto aos pactos: “No campo administrativo, muito bem. Agora, no campo jurisdicional, é impróprio.
Nosso pacto é com a Constituição Federal”, afirmou, em 3 de junho. Também associações de juízes criticaram o pacto, que envolveu também o Legislativo, mas ganhou mais força entre o Judiciário e o Executivo. Em nota, assinada pelo presidente da entidade, Fernando Mendes, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) comentou o apoio de Toffoli à reforma da Previdência, que tem artigos que podem ser alvos de ações no Supremo.
Após as reuniões com Toffolli, Bolsonaro afirmava que havia sido feito um pacto ‘para que todos os poderes da República trabalhem em conjunto para resolver problemas que atravancam o crescimento do país’. Um dos temas tratados foi o de que decretos revogando os de presidentes que o antecederam pudessem ser assinados por Bolsonaro. Esta prática é inconstitucional.
Em pronunciamento, em 30 de maio, durante café da manhã com deputadas federais e senadoras do PSL, no Palácio do Planalto, Bolsonaro agradeceu e exaltou a presença de Dias Toffoli. No pronunciamento, disse que a Justiça está ‘ao nosso lado’ e ‘o que é certo, razoável e bom para o país’. Não contendo sua satisfação, concluiu: “E nós juntos agora, juntamente com o Poder Judiciário, atingiremos esse objetivo de fazer um país que vá no sentido certo, da prosperidade, da igualdade e da Justiça’. O colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo, revelava, em 18 de agosto, que Bolsonaro festejava o apoio, dizendo a aliados que “O Tóffoli é nosso”.