Em depoimento nesta terça-feira (1/6) na CPI do Genocídio, a médica Nise Yamaguchi confirmou o seu entendimento de que a vacinação não é a única saída para o combate à pandemia do novo coronavírus, não sendo necessário vacinar ‘aleatoriamente’, defendendo, ao mesmo tempo, o tratamento precoce, com a cloroquina, por exemplo. Este entendimento foi expressado pela oncologista em audiência feita anteriormente na Câmara dos Deputados, e confirmado em depoimento à CPI do Genocídio.
Naquela ocasião disse: “Existem evidências científicas robustas falando que o tratamento precoce salva vidas, portanto, não é necessário vacinar aleatoriamente uma população inteira dizendo que é a única saída”. O tratamento precoce defendido por ela inclui o uso de medicamentos sem eficácia para covid, como a cloroquina.
Os próprios fabricantes não recomendam o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina para o tratamento da Covid-19, revelaram a ONG Repórter Brasil. Das seis farmacêuticas que fabricam esses medicamentos no Brasil, quatro vetam seu uso para tratar a doença.
Após a confirmação de Yamaguchi, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI, perguntou se ela mantém o entendimento de que o tratamento precoce é tão importante quanto a vacinação. Ela reforçou que “não se deve vacinar aleatoriamente dizendo que a única saída é a vacinação, porque o tratamento precoce é tratamento, a vacina não deve ser vista como tratamento”.
Como a declaração é muito grave e as sessões da CPI podem ser assistidas em todo o país, o presidente da Comissão, Omar Aziz, pediu que as pessoas ‘desconsiderassem’ as afirmações da médica que relativizam a necessidade da vacinação em massa. O posicionamento da médica tanto em defesa do tratamento precoce, quanto à vacinação não ser a solução mais eficaz, foram seguidos à risca desde o início da pandemia pelo presidente Jair Bolsonaro, tendo virado política de governo, responsável pela aceleração do número de pessoas contaminadas e mortas pela covid-19, pela demora na contração da vacina e pela orientação do tratamento precoce.
Comando paralelo
Apesar de dizer que nunca fez parte de qualquer conselho paralelo que traçava políticas relativas à pandemia, as posições da médica são as mesmas seguidas por Bolsonaro em declarações públicas e documentos oficiais. A respeito deste conselho ilegal, do qual faziam parte também outros médicos e pessoas não integrantes do governo, como filhos do presidente, Yamaguchi disse ter tido reuniões com pessoas de dentro do governo, mas somente para tratar de opiniões científicas, de conhecimento público. “Foram pouquíssimas as reuniões no Palácio do Planalto”, afirmou.
A Comissão tem investigado quem faz aconselhamento médico e técnico a Bolsonaro sobre a pandemia desde que os ex-ministros da saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich afirmaram na CPI que o presidente não se aconselhava com eles. Outros nomes que fizeram aconselhamento a Bolsonaro também serão convocados na CPI nas próximas sessões. Entre eles o empresário Carlos Wizard e o ex-assessor especial da Presidência Arthur Weintraub.
Yamaguchi negou reiteradas vezes na CPI do Genocídio ter participado de reuniões deste gabinete paralelo. “Eu desconheço um gabinete paralelo, ou que integre um gabinete paralelo. Sou uma colaboradora eventual. Participo como médica, cientista”, chegou a dizer, contrariando o que declararam na CPI o presidente da Anvisa, Barra Torres e o ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta.
Documentos mostram que ela frequentou o Ministério da Saúde, ao longo de seis meses, para reuniões nos gabinetes do então ministro interino Eduardo Pazuello e do secretário-executivo Elcio Franco. Os encontros sistemáticos indicam a influência direta da entusiasta da cloroquina sobre o alto escalão da pasta.
Os registros das idas da médica ao ministério constam da lista de todos os visitantes da sede do ministério em Brasília em 2020. O documento mostra que Nise Yamaguchi esteve no prédio em pelo menos quatro datas em junho, julho e dezembro de 2020. Em duas delas, a médica passou pela recepção mais de uma vez, nos períodos da manhã e da tarde – o que indica que teve reuniões que ocuparam todo o dia. Mas ela se justificou dizendo que era uma consultora esporádica.
Alteração da bula da cloroquina
Barra Torres chegou dizer na CPI que na única reunião deste gabinete paralelo do qual ele participou, Nise Yamaguchi defendeu a alteração da bula da cloroquina, de modo a indicar o medicamento como tratamento para covid-19. A mudança seria feita por decreto presidencial, mas Barra Torres se negou a acatar a demanda que contrariava as normas da Anvisa. O general Walter Braga Neto, então ministro da Casa Civil e hoje na Defesa, também participou, de acordo com Barra Torres.
Nise disse que não era verdadeira a declaração de Barra Torres sobre a alteração da bula da cloroquina. “Achei estranha aquela declaração sobre um fato que não aconteceu”, afirmou. Lembrada pelos senadores da CPI de que estava afirmando que o presidente da Anvisa mentiu em depoimento e que pode ser preso por isto, passou a dizer que ele talvez tenha se equivocado.
A seguir, afirmou à CPI da Covid ter atuado sempre preocupada com a ciência e os pacientes, mas acabou produzindo prova contra si mesma ao entregar documento aos senadores que mostra que ela agia, na verdade, preocupada com a imagem do presidente Bolsonaro. Cedeu à CPI cópias das trocas de mensagem com outro médico, o anestesista Luciano Dias, sobre o decreto presidencial que alteraria a bula para legitimar o uso do medicamento para a covid-19. No final, ela recomenda não fazer o decreto por problemas técnicos e arremata: “Exporia muito o presidente”.
Fabricantes não recomendam cloroquina
Os próprios fabricantes não recomendam o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina para o tratamento da Covid-19, revelaram a ONG Repórter Brasil. Das seis farmacêuticas que fabricam esses medicamentos no Brasil, quatro vetam seu uso para tratar a doença.
De acordo com a ONG, essa maioria foi formada após a Apsen, principal fabricante de hidroxicloroquina do País, se posicionar de forma contrária pela primeira vez desde abril, quando a empresa divulgou estudos que supostamente indicavam a melhora de pacientes com Covid-19 após o uso da cloroquina.
A empresa voltou a se posicionar oficialmente sobre o tema na última quarta-feira (3/3), quando divulgou em seu site que, “com base nas evidências científicas atuais, a Apsen recomenda a utilização da hidroxicloroquina apenas nas indicações previstas em bula (malária e doenças reumáticas)”.
Essa mudança de posicionamento da Apsen aconteceu mais de quatro meses depois de a Organização Mundial de Saúde (OMS) rejeitar de forma conclusiva o medicamento para este fim e após a Repórter Brasil entrar em contato com a empresa para questionar sobre dois contratos de empréstimo assinados com o BNDES em 2020, que somam R$ 136 milhões.
Desse total, segundo a ONG, R$ 20 milhões já foram desembolsados pelo banco, mas para investimento em inovação – o contrato não permite investir em medicamentos antigos, como a cloroquina, que a Apsen produz há 18 anos.
Segundo o levantamento da Repórter Brasil, a Apsen é a maior beneficiada pela comercialização recorde da cloroquina em 2020. As vendas do medicamento ajudaram a empresa a alcançar faturamento recorde de R$ 1 bilhão.
De acordo com o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), o faturamento das empresas com o medicamento no ano passado foi de R$ 91,6 milhões, ante R$ 55 milhões em 2019 – alta de 66%.
As vendas de hidroxicloroquina bateram recorde em 2020 após se tornar o carro-chefe do governo brasileiro para enfrentar a Covid-19. Só em farmácias foram comercializadas 2 milhões de unidades, com pico de vendas em dezembro – alta de 113% no ano em comparação a 2019, segundo o Conselho Federal de Farmácia.