Tema complexo e de grande repercussão, a necessidade de regulação das atividades das grandes plataformas digitais é cada vez demandada por sociedades civis do mundo inteiro.
Infelizmente, no Brasil ainda são poucos os avanços em relação ao assunto, na comparação com as regulações já aprovadas em países da União Europeia e nos Estados Unidos (EUA) — veja ao final.
Atualmente, no Brasil o principal dispositivo sobre o tema é o Projeto de Lei (PL) nº 2630/2020 — também conhecido como PL das fake News. Já aprovado pelo Senado Federal, o PL tramita desde julho de 2020 na Câmara dos Deputados, sem que até hoje o texto tenha sido submetido à votação no plenário daquela casa.
O PL 2630 institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, prevendo a responsabilização das plataformas digitais pela difusão de informações falsas nos ambientes digitais que conformam a web (ou www). O texto do projeto estabelece regras para a regulação de conteúdo das plataformas digitais, como exigir a identificação de anunciantes e impulsionadores, criminalizar a divulgação de conteúdos falsos por meio de robôs (ou contas automatizadas), prevendo penalidades às empresas que não prevenirem práticas ilegais em seus serviços.
A urgência de o Brasil aprovar o PL 2630 ficou ainda mais evidente com a disseminação de fake news sobre a crise que no momento afeta o estado do Rio Grande do Sul (RS), onde o lago guaíba e dezenas de outros rios transbordaram, desabrigando milhares de pessoas em 60% dos municípios gaúchos. As fake news divulgadas sobre as enchentes no Rio Grande do Sul vão desde teorias da conspiração sobre o motivo do desastre até boatos de cunho fundamentalista e religioso, relacionando a apresentação de uma cantora pop internacional (Madonna) no Rio de Janeiro à perda de vidas em centenas de cidades gaúchas.
Outras fake news disseminadas afirmaram que caminhões com mantimentos para os desabrigados das chuvas estariam sendo sendo impedidos de entrar no Rio Grande do Sul.
Extrema direita combate qualquer forma de regulação
Setores políticos ligados à extrema direita e ao bolsonarismo são os que mais combatem o PL 2630 ou qualquer outro dispositivo que implique regulação das plataformas digitais. O principal argumento desses setores políticos é o de que o PL representaria uma suposta “ameaça” à “liberdade de expressão”. O que é absurdo, uma vez que, no Estado de Direito, as liberdades de pensamento e expressão não implicam a ausência de limites e responsabilidades.
No interior da Câmara dos Deputados, parlamentares de extrema direita que hoje compõem o Centrão — incluindo as bancadas da bíblia (igrejas evangélicas), da bala (indústrias armamentistas) e do agronegócio — boicotam abertamente qualquer possibilidade de avanço na tramitação do PL 2630. O engavetamento do PL também atende aos interesses das maiores e mais importantes plataformas digitais da atualidade, como Alphabet (Google e Youtube) e Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp). Plataformas que não desejam ver aprovada qualquer iniciativa visando a regulação de suas atividades econômicas. Isto porque, no atual modelo de negócios vigente nessas plataformas, suas astronômicas margens de lucro são obtidas por meio do maior número possível de engajamentos nas mídias e redes sociais, independentemente de os conteúdos serem falsos ou verdadeiros.
PL 2630 é fundamental para o combate à desinformação
A aprovação do PL 2630 é fundamental não somente para combater os fenômenos de desinformação, mas para atualizar o arcabouço jurídico e institucional já existente no Brasil com relação aos direitos à informação e à comunicação como direitos da cidadania.
Um dos dispositivos do atual arcabouço jurídico é a Lei de Acesso à Informação (LAI), ou Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regula o direito constitucional de acesso a informações dos cidadãos brasileiros junto a órgãos e entidades públicas, a partir do entendimento de que tal acesso é um direito de todos e um dever do Estado. Por meio da LAI, muitas informações antes protegidas por um injustificável sigilo são hoje acessíveis por qualquer brasileiro ou brasileira em repositórios e bancos de dados, analógicos ou virtuais.
Outro dispositivo importante é o Marco Civil da Internet, também conhecido como Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. O disposto nesta lei aplica-se mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou, no mínimo, uma pessoa jurídica integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento situado no país.
Em complemento ao Marco Civil da Internet, o Brasil dispõe ainda da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), ou Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, que “dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”. Importante destacar que a regulação das atividades das plataformas digitais é fator que poderá levar ao aperfeiçoamento da própria LGPD, na medida em que atualmente as plataformas praticam a coleta de dados de milhões de usuários através de contratos pouco transparentes quanto às autorizações que os próprios usuários outorgam às plataformas para que essas utilizem seus dados pessoais em troca de uma suposta “gratuidade” de serviços.
União Europeia aprovou regulação em 2022
Em 2022, a União Europeia aprovou o Regulamento para Serviços Digitais (Digital Services Act ou DSA), dispositivo que já permitiu a abertura de investigações sobre a atuação de plataformas. Iniciada ao fim de 2023, a primeira investigação mirou a disseminação de conteúdo ilegal relacionado aos ataques do grupo Hamas a Israel na rede X (ex-Twitter), do empresário Elon Musk, pivô da recente crise com o Supremo Tribunal Federal (STF). A segunda investigação avalia se a plataforma chinesa TikTok infringiu as normas do bloco de países.
A criação de regras para moderação de conteúdo é um dos principais pontos do DSA europeu e que também estão presentes no PL 2630. Essas regras exigem que as plataformas disponibilizem mecanismos de fácil acesso para que usuários indiquem conteúdos que considerem ser ilegais. Neste caso, as plataformas devem tomar medidas contra sua utilização abusiva, por exemplo suspendendo usuários que forneçam com frequência conteúdos manifestamente ilegais. Nesses casos, as plataformas devem comunicar aos usuários os motivos que levaram à remoção de um conteúdo ou a restrição de acesso a uma conta. O DSA europeu também impõe deveres adicionais às plataformas, como a publicação de relatórios anuais de transparência sobre suas atividades.
Estados Unidos
Nos Estados Unidos, uma das possibilidades em pauta sobre a regulamentação das redes sociais é a revisão de uma lei federal que atualmente oferece ampla imunidade às plataformas online em relação ao conteúdo postado por terceiros. Uma das barreiras no caso dos EUA é a maneira como a legislação do país dispõe sobre a liberdade de expressão.
As plataformas de redes sociais atualmente desfrutam de uma considerável autonomia na definição e aplicação de suas políticas de moderação de conteúdo nos EUA. Empresas como Meta (Facebook), X (antigo Twitter), YouTube e outras têm o poder de decidir quais tipos de conteúdo são permitidos em suas plataformas e de remover aqueles que considerem estar “violando” suas diretrizes.
Essa “autorregulação” das plataformas de redes sociais é em grande parte possibilitada pela Seção 230 do Communications Decency Act, uma lei norte-americana que isenta essas empresas de responsabilidade legal pelo conteúdo publicado por terceiros em suas plataformas.
Tais políticas são estabelecidas com base em uma variedade de critérios, incluindo a suposta proteção contra discursos de ódio, desinformação, violência e outras formas de conteúdo nocivo.
No entanto, essa ampla autonomia das plataformas também vem sendo alvo de críticas nos EUA. Algumas dessas críticas referem-se ao excesso de poder das plataformas sobre a produção e disseminação de discursos nos ambientes online e sobre a falta de transparência quanto aos critérios utilizados por essas empresas em suas políticas de moderação de conteúdo.
Regular as plataformas é fundamental para sociedades civis
Seja no Brasil, na Europa, nos EUA, na Ásia ou em qualquer outra parte do mundo, as grandes plataformas hegemônicas da atualidade não desejam nenhuma forma de regulação de suas atividades e, para piorar, continuam atuando como se fossem meros intermediários dos processos comunicacionais e de mediação que tanto influenciam. Assim, elas atuam como se não interferissem diretamente nos mecanismos de disseminação e visualização de informações e notícias por meio de seus algoritmos e programações. Em outras palavras, como se fossem corporações empresariais absolutamente “neutras” e “desinteressadas” nos ecossistemas comunicacionais.
É por esta razão que, no Brasil e em várias outras partes do mundo, as grandes plataformas vêm reagindo com ferocidade cada vez maior contra quaisquer propostas de regulação ou que modifiquem o atual modelo de negócios baseado em cliques e engajamentos como base de suas respectivas monetizações.
Regular as atividades empresariais e comunicacionais das grandes plataformas é essencial para manter um saudável espaço de debate público sobre questões de interesse das sociedades civis no mundo inteiro, aperfeiçoando assim os mecanismos de participação popular e combatendo fenômenos de desinformação.