Apresentada pela mídia comercial como se fosse o resultado de um suposto ‘choque de posições inconciliáveis’, a demissão de Luiz Henrique Mandetta, ocorrida na última quinta-feira (16/4), na verdade não expressou nenhuma divergência de fundo entre Jair Bolsonaro e o ex-ministro, sobretudo no que diz respeito à continuidade da política de desmonte, precarização e sucateamento já praticada na saúde pública. Eventuais divergências sobre a forma como deve ser feito o combate à covid-19 — se por meio do isolamento social horizontal ou da chamada ‘flexibilidade’ e liberação paulatina das atividades econômicas, como defende Bolsonaro — nunca colocaram presidente e ministro em campos verdadeiramente opostos, do ponto de vista ideológico. Vejamos.
Em sua gestão, Mandetta continuou (e aprofundou) a perversa política de sufocamento do Sistema Único de Saúde (SUS) que já vinha sendo intensificada pelo governo Temer. Além de tentar uma militarização geral das unidades federais de saúde, a gestão Mandetta negou-se, por exemplo, a realizar concursos públicos para contratação de novos profissionais necessários ao pleno funcionamento da rede, onde clínicas inteiras continuam sendo fechadas ou inviabilizadas por falta de pessoal. Estimativa da Defensoria Pública da União (DPU) considera haver atualmente um déficit de 10 mil profissionais nos hospitais e institutos sob responsabilidade do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro.
Ex-ministro defendeu cobrança por consultas no SUS e apoiou Emenda 95, que cortou recursos
Em maio do ano passado, durante entrevista ao programa ‘Roda Viva,’ da TV Cultura, Mandetta defendeu a cobrança de consultas de pacientes do SUS, afirmando que ‘lutaria para que a proposta fosse aprovada’, numa óbvia violação dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde, que deve ser universal e gratuito. A posição do então ministro foi bem típica de quem sempre esteve comprometido com a privatização desse sistema. Aliés, segundo reportagem publicada pelo site informativo ‘Rede Brasil Atual’, durante a campanha de 2014, quando pela primeira vez foi eleito deputado federal pelo Mato Grosso do Sul, Mandetta recebeu doação (legal) de R$ 100 mil da operadora de plano de saúde Amil. Em 2018, logo após a eleição de Bolsonaro, Henrique Mandetta foi escolhido para o Ministério da Saúde com aval dos deputados da Frente Parlamentar do setor, que reúne representantes dos interesses de planos privados, santas casas e ‘organizações sociais’.
Antes de chegar ao ministério, Mandetta foi gestor de uma cooperativa de médicos em Mato Grosso do Sul, Unimed. Na Câmara dos Deputados, fez pesado lobby contra o programa ‘Mais Médicos’, que chegou a atender 60 milhões de brasileiros no interior do país. Em 2016, ele foi um dos parlamentares que votaram a favor da Emenda Constitucional nº 95, que congelou os orçamentos públicos por 20 anos. Só nos últimos três anos, a Emenda 95 retirou do setor de saúde cerca de R$ 22,5 bilhões, valor superior a todo o volume de recursos destinado ao Ministério da Saúde em caráter emergencial para a União fazer frente à pandemia do novo coronavírus, no total de R$ 18,9 bilhões. Na época em que votou pela perversa Emenda 95, Mandetta argumentou que os serviços de saúde e educação ‘não seriam prejudicados’.
Novo ministro propôs escolha entre jovem e idoso para saber ‘quem deve morrer’
Médico com especialidade em oncologia, o novo ministro da saúde, Nelson Teich, é também comprometido com a saúde privada, e não com o SUS. É dono de empresas ligadas ao setor privado de saúde, entre elas a Health Care, e proprietário de clínica oncológica na Barra da Tijuca. Em abril do ano passado, durante um fórum nacional sobre oncologia, realizado em Brasília, gravou um vídeo institucional no qual afirmou que ‘o dinheiro para a saúde é baixo no Brasil’ e, por isso, deveriam ser feitas ‘escolhas’. Teich propôs então o seguinte dilema: “sei lá, eu tenho uma pessoa que é mais idosa, que tem uma doença crônica avançada, ela teve uma complicação. Para ela melhorar, eu vou gastar praticamente o mesmo dinheiro que eu vou gastar para investir num adolescente que está com um problema. O mesmo dinheiro que eu vou investir é igual. Só que essa pessoa é um adolescente que vai ter a vida inteira pela frente e o outro é uma pessoa idosa que pode estar no final da vida. Qual vai ser a escolha?”, perguntou. Ou seja: para Teich, a escolha deveria ser abandonar o idoso à própria sorte.
É com um ministro assim, portador de uma visão de mundo absolutamente desumana e perversa, voltada apenas ao mercado, que o governo Bolsonaro pretende dar seguimento à sua política de desmonte da saúde pública no Brasil. A saída de Mandetta e a ascensão de Nelson Teich comprova que toda e qualquer situação pode sempre piorar mais. Durante o anúncio de seu nome, em entrevista coletiva realizada na última quinta-feira 16, Teich afirmou estar ‘em alinhamento completo’ com Bolsonaro. O presidente, por sua vez, sinalizou a intenção de ‘reabrir as atividades econômicas’ (leia-se: reduzir a quarentena), o que pode trazer consequências drásticas para a saúde de toda a população, na medida em que contraria evidências científicas (nacionais e mundiais) de que o isolamento social é o único caminho para conter a expansão do coronavírus.
Chamada de ‘gripezinha’ por Bolsonaro, covid-19 já matou mais de 2 mil pessoas no Brasil
Embora tão privatista e descompromissado com a saúde pública quanto Nelson Teich, o ex-ministro Mandetta ao menos vinha seguindo algumas diretrizes básicas de combate à covid-19, baseadas no isolamento social. Dados do próprio Ministério da Saúde, atualizados até 17 de abril, apontam 33.682 casos de covid no Brasil, 2.141 mortes. Em 20 de março deste ano, Bolsonaro chamou a covid-19 de ‘gripezinha’.
“Se o novo ministro realmente flexibilizar a quarentena, será um absoluto desastre, especialmente para a população pobre das favelas e periferias, onde o acesso a água potável e esgotamento sanitário é muito baixo. Não podemos aceitar que o governo federal se comporte como se nada estivesse acontecendo no país ou tente minimizar a gravidade dessa pandemia”, afirmou Ivone Suppo, da direção do Sindsprev/RJ.
“É inaceitável que o atual governo fique brincando de fazer saúde pública. O compromisso tem que ser com a vida das pessoas, e não com os lucros dos patrões e especuladores. Por isso a quarentena é tão importante”, declarou Pedro Lima, dirigente do Sindsprev/RJ e da Fenasps (federação nacional).
“Sinceramente, fico indignado quando vejo o novo ministro, Nelson Teich, dizer que o sistema de saúde tem que fazer opção por quem deve ou não morrer. É um absurdo. É inaceitável. A vida tem que estar acima de todas as coisas. Saúde não é mercadoria. Saúde é serviço público essencial”, desabafou Rolando Medeiros, também membro da direção do Sindsprev/RJ.
Assista ao vídeo em que o novo ministro, Nelson Teich, propôs uma ‘escolha’ entre paciente jovem e idoso, clicando aqui.
OBS – caso queira ir direto à parte do vídeo em que ele faz as declarações, coloque o cursor na posição de 4 minutos e 40 segundos de exibição.