Estudo publicado pela Rede de Observatórios da Segurança mostra que mais de 4 mil pessoas foram mortas por policiais no Brasil em 2023, a maioria delas negras ou pardas. Recentemente, casos de brutalidade policial em São Paulo chocaram todo o país. Para falar sobre o assunto, o Jornal do Sindsprev/RJ entrevistou Osvaldo Mendes, dirigente da Secretaria de Gênero, Raça e Etnia do Sindicato.
Jornal do Sindsprev/RJ – No início deste ano, a PM paulista espalhou terror na Baixada Santista, deixando um saldo de 56 mortos. No dia 2 deste mês, o soldado Luan Felipe Alves Pereira, também da PM paulista, foi flagrado em vídeo atirando um homem de uma ponte, durante uma blitz. Como podemos reagir a situações bárbaras como essas?
Osvaldo Mendes – temos que primeiro considerar o fato de que o Estado brasileiro foi um dos últimos a abolir a escravidão. Temos também de considerar que, historicamente, as polícias militares nascem como herdeiras ideológicas do processo de escravidão, uma vez que as forças repressivas, no Brasil, foram criadas com o objetivo primordial de perseguir, prender e matar os negros e negras que fugiam das senzalas para não serem escravizados. Então, o Estado paulistano, como parte das estruturas que compõem o Estado brasileiro, também tem sua origem vinculada aos processos históricos da escravidão. É um Estado também machista e homofóbico, um Estado que vê o povo negro como inimigo número um a ser combatido. Inclusive, lembro que, no início do século XX, houve tentativas de instaurar a eugenia no Brasil, visando embranquecer os negros. Tanto é verdade que muitos negros são até hoje assimilados, ou seja, negros que querem se transformar em brancos. Toda esta herança ideológica da escravidão é o que explica a mortandade de negros e negras nas mãos da polícia paulista e também nas mãos das polícias de outros estados, como Rio de Janeiro e Bahia, este último o que mais mata no país.
Jornal do Sindsprev/RJ – Como “explicação” para os casos de violência policial cometida contra cidadãos brasileiros de pele preta ou parda, a grande mídia e os governos federal e estaduais apontam uma suposta “falta de preparo” dos agentes do Estado como a principal causa. No seu entendimento, esta explicação é aceitável?
Osvaldo Mendes – infelizmente, o Estado sempre tenta justificar a truculência policial sob o argumento de que os policiais seriam ‘mal treinados’, ‘incompetentes’ ou ‘desqualificados’, mas na verdade não é nada disso. Na verdade, os policiais são preparados pelo Estado para fazer exatamente o que já fazem cotidianamente, ou seja, matar o povo negro, pois é um Estado que ainda sonha com um processo de limpeza étnica. Portanto, o responsável pelas mortes de negros e negras é o Estado brasileiro. A matança policial do povo negro não é causada pela falta de preparo. É herança ideológica da escravidão.
Jornal do Sindsprev/RJ – Entre as polícias mais violentas do Brasil está a PM da Bahia, governada pelo PT, o que mostra ser a barbárie policial um problema mais amplo que a diferença entre direita e esquerda. É por isto que o Movimento por Reparação dos Povos Negros e Indígenas reivindica a fundação de um outro tido de Estado para o Brasil?
Osvaldo Mendes – vejamos o caso da Bahia, que é uma pequena África no Brasil, uma verdadeira diáspora negra. Infelizmente, para o Estado brasileiro, a Bahia é vista como um grande quilombo a ser exterminado. Por isto que precisamos de um grande projeto político do povo negro para o Brasil, um projeto que nós, do Movimento de Luta pela Reparação Histórica para os povos negro e indígena, vimos ser debatido na III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em setembro de 2001, em Durban, África do Sul, com mais de 16 mil participantes de 173 países.
Jornal do Sindsprev/RJ – mas por que reparação histórica?
Osvaldo Mendes – a reparação histórica é pelos crimes cometidos contra a humanidade num determinado período da história. E esses crimes são o crime de escravidão, do tráfico transatlântico, do colonialismo em África e do colonialismo nas américas. Crimes imprescritíveis porque são crimes da história. Assim, os países que cometeram esses crimes, como o Brasil, têm que reparar os povos negros e indígenas. E somos nós, negros e indígenas, que vamos dizer quais e como serão feitas as reparações históricas. Não serão os governos e estados que nos dirão isto. Dessa maneira, propomos a reorganização do Estado brasileiro em outras bases, ou seja, um Estado que efetivamente represente todos os povos que compõem a nação, como negros, indígenas, ciganos e judeus, entre outros. Reivindicamos isto porque, na realidade atual, o Estado só representa os brancos, e é por isto que o Estado se nega a fazer a demarcação de terras para os indígenas e quilombolas. A reorganização do Estado é necessária para construção da nossa identidade como povo. Precisamos de uma nação inclusiva e que represente todos os povos existentes nela. Este projeto foi elaborado e escrito por Eustáquio Rodrigues e Iedo Ferreira, dois grandes militantes desta causa. É o projeto político do povo negro para o Brasil.