Uma das pioneiras do movimento pela saúde do trabalhador no Brasil, a médica e pesquisadora Lia Giraldo da Silva Augusto (foto), do Instituto Aggeu Magalhães (IAM) da Fundação Oswaldo Cruz de Pernambuco (Recife), conversou recentemente com a reportagem do Sindsprev/RJ sobre a evolução da pandemia de covid-19 no país e a equivocada postura adotada pelo governo Bolsonaro, que vem pressionando pela flexibilização das medidas de isolamento social. “Bolsonaro está aplicando crenças pessoais, que atendem a interesses particulares, para situações de calamidade pública, colocando em risco a vida das pessoas, e ele não tem esse direito”, diz.
Lia Augusto também frisa que a pandemia de covid deve servir como reflexão para a necessidade de fortalecimento do SUS. “O Covid-19 revelou claramente os efeitos nefastos do desmonte do Estado brasileiro e das políticas públicas nacionais”, destaca a pesquisadora.
Sindsprev/RJ – Dra. Lia, o governo Bolsonaro, junto com alguns setores do empresariado, vem pressionando pela flexibilização das medidas de isolamento social, condição necessária para que se reduza a velocidade de disseminação do coronavírus. Ao mesmo tempo, e na linha oposta, a maioria dos prefeitos e governadores já falam em adotar (e alguns já realizando concretamente) o lockdown, como já está acontecendo em quatro cidades do Maranhão, em dez do Pará e em parte da zona oeste do Rio de Janeiro. É falsa a dicotomia entre Economia e Saúde? Por quê?
Dra. Lia – Sim, é totalmente falsa hoje neste contexto de pandemia, mas também sempre. Nem os mais conservadores economistas neoliberais afirmam que estes dois condicionantes se opõem. Pelo contrário. Bolsonaro está aplicando crenças pessoais, que atendem a interesses particulares, para situações de calamidade pública, colocando em risco a vida das pessoas, e ele não tem esse direito. É certo que todos, trabalhadores e empresários, estão perdendo seus capitais nesta pandemia, mas o remédio não pode ser matando o paciente. O governo já deveria ter agido rapidamente para socorrer os trabalhadores e os empresários. Ele não pode dizer, como presidente, “e daí?”, “O que querem que eu faça?” Respostas decepcionantes e covardes, de quem não tem competência para governar. Ele jurou cumprir a Constituição do Brasil, mas falta-lhe preparo, caráter e desejo para ser um governante democrático. O artigo 170 da Constituição Federal determina que “a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. A razão da economia é produzir bens e serviços para a sociedade, e que toda a circulação de capital, incluindo salários, lucros e os impostos, geram os recursos para as políticas públicas e especificamente para a garantia efetiva da saúde dos cidadãos. Precisamos de saúde não só para trabalhar e produzir, mas para garantir o bem-estar da condição humana, que deve ser digna, com os recursos não só produzidos individualmente, mas também com os coletivos. Governar significa agir para proteger a população e os trabalhadores. Vemos como os empresários foram favorecidos ao receberem apoio financeiro, incentivos fiscais, desonerações diversas, entre outras medidas que afetam a economia necessária a atender às políticas públicas e de interesse social. O Covid-19 revelou claramente os efeitos nefastos do desmonte do Estado brasileiro e das políticas públicas nacionais. Por exemplo, a Emenda Constitucional (EC) nº 95 arrebentou o SUS, dificultando ainda mais o enfrentamento do vírus nesta condição epidêmica. O Covid-19 exige governança para atender aos desafios político-constitucionais de nossa sociedade, que são diversos. E aqui temos de buscar, uma vez mais na economia, o princípio da equidade, para atender às demandas tanto da saúde como da seguridade social. A economia predatória sem dúvida faz parte da determinação da saúde-doença. Não é à toa que o Covid-19 mata mais pessoas portadoras de outras comorbidades (obesidade, hipertensão arterial, diabetes, hábito de fumar etc.), todas dependentes do padrão de consumo ditado pelo modo capitalista de produção. A segurança e soberania alimentar, frente à produção de alimentos ultra- processados; a indústria do tabaco e do álcool, entre outras que condicionam modos de vida nocivos, devem entrar na agenda de enfrentamento desta nova realidade sanitária no mundo globalizado. Hoje, acertadamente, já nomeamos essa economia perversa de necroeconomia. Certamente Bolsonaro não irá reconhecer sua responsabilidade pelas consequências de utilizar um discurso da morte de parcela de seu povo, em nome de salvar a economia. Caberá aos trabalhadores lutar por seus direitos, por sua saúde, por sua vida, como sempre historicamente tiveram que fazer.
Sindsprev/RJ – Em comparação com a evolução da pandemia em outros países, como EUA, Espanha, França e Itália, o que a senhora apontaria de específico no caso brasileiro? Em que medida a evolução da pandemia no Brasil pode se acentuar devido às precárias condições sanitárias do país, sobretudo nas favelas e comunidades carentes, onde é precário o acesso a água potável e saneamento básico?
Dra. Lia – Nesses outros países, onde correu a pandemia de covid-19 antes do Brasil, também se observam desigualdades sociais, mas vemos que elas são diferentes e em menor proporção. O enfrentamento da pandemia por Covid-19 seguiu dinâmicas diferenciadas, no tempo e no espaço. Os que adotaram estratégias de enfrentamento de modo rápido, sem negar o perigo do vírus, mobilizando todos os recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis, tiveram menos mortes. Os governantes desses países também se depararam com as seguintes características que se repetem em nosso contexto: o Covid-19 tem maior velocidade de infecção do que observado nas epidemias de Coronavírus anteriores, esse novo vírus tem muita instabilidade genética, há uma grande quantidade de pessoas infectadas, mas assintomáticas, há indisponibilidade de testes confiáveis para diagnóstico, há impossibilidade de vacina no curto prazo, há enorme possibilidade de esgotamento da capacidade de atendimento de alta complexidade nos hospitais, há grande quantidade de pessoas com específicas vulnerabilidades e, portanto, maior risco para desfechos fatais e há ausência de medicamentos eficazes. Todas essas caraterísticas foram dadas e ficaram amplamente conhecidas pela ocorrência dessa epidemia na experiência chinesa, no início do ano de 2020. Então, embora sendo uma nova epidemia, já havia elementos técnicos e científicos para tomada de decisão à época em que se tornou um problema para outros países. Neste caso, todas as medidas levaram a uma grande e única estratégia: o distanciamento social, a quarentena e, para os casos positivos, o isolamento total. Na quase totalidade dos países, prevaleceu a defesa da vida e da saúde, e os governos foram obrigados a mobilizar recursos para socorrer tanto trabalhadores como empresários. No Brasil, a pandemia do Covid-19 teve particularidades. A pandemia de Covid-19 mostrou como é importante ter o SUS. O Sistema Único de Saúde do Brasil está fazendo diferença em comparação aos EUA, que, embora muito mais rico, está apresentando enorme dificuldade para fazer o seu enfrentamento.
Além da crise sanitária desta pandemia, o Brasil vive uma enorme crise política provocada por um presidente sem qualidades de estadista. Uma crise ética também nos assola, representada pelo desmonte de diversas políticas fundamentais.
A condição federativa do Brasil, com o SUS estruturado nos diversos níveis de governo, vem permitindo resistir à pressão do presidente Bolsonaro contra a ação dos estados e municípios. Acertadamente o STF decidiu que a proteção à saúde é dever do Estado, manifestando-se que deve ser realizado por cada um dos três poderes, como está na Constituição. Temos análises do comportamento do vírus em países em melhores condições políticas, sociais, econômicas e sanitárias, e já temos indicativos de que em nosso contexto será ainda mais trágico. O auxílio emergencial de R$ 600,00, por três meses, revelou a existência de milhões de brasileiros invisíveis, com uma parcela sequer portadora de identificação. Se não houver socorro do estado e da sociedade, provavelmente o Brasil será inscrito entre os países onde a pandemia de Covid-19 proporcionalmente ceifará mais vidas. O IBGE recentemente mostrou como no Brasil ainda há enorme desigualdade quanto ao acesso a água potável e redes de esgotamento sanitário. As más condições gerais de moradia e de transporte público colocam também grandes dificuldades para o enfrentamento da pandemia. A crise sanitária ainda se agrava pela ignorância e pela forma desqualificada de governar do atual presidente da República, que contribui para a perda de coesão social, aumentando claramente a exposição ao vírus e aumentando o número de mortes. O Brasil, no cenário mundial, é o país que menos testes diagnósticos realizou até agora. Somos um país com baixo acolhimento e proteção social. Estas condições trazem um péssimo diferencial do Brasil frente aos dos demais países, mesmo comparando com outros vizinhos da América Latina.
Sindsprev/RJ – O novo ministro da saúde, Nelson Teich, reduziu o número de entrevistas coletivas de sua pasta, que na gestão anterior eram diárias, com apresentação dos dados relativos à evolução do coronavírus. Esta nova sistemática contribui de alguma forma para passar às pessoas a sensação de que a pandemia não seria tão grave?
Dra. Lia – Certamente o presidente e seu gabinete inibem a ação do Ministério da Saúde. A troca de ministro e da equipe foi claramente entendida como uma forma de reduzir a informação, fragilizar o SUS, quebrar o moral dos servidores públicos, reduzir a gravidade da epidemia, minimizar os mortos pelo Covid-19, não fazer esforços de coordenação nacional, colocar um ministro sem lastro com as políticas públicas, militarizar o Ministério da Saúde (que tem tradição técnica em todos os escalões) e diminuir a sua transparência. A redução de coletivas está em consonância com sua decisão de ignorar a pandemia e as mortes, jogando nas costas dos estados e municípios a maior parte do esforço de enfrentamento da pandemia. Enquanto isto, cresce sua imagem com seus aparecimentos em aglomerações, sem a devida proteção, sua fala de incentivo às ações políticas contra o estado democrático e seu deboche frente à tragédia humana, tudo isto colorido de verde-amarelo, um acinte ao pavilhão nacional. Mas que, somados à dificuldade social e sanitária concreta, a população tende a ter sua situação de risco como uma fatalidade e, mediante mecanismos coletivos perigosos, tentar sobreviver ao pandemônio na pandemia. Uma tragédia anunciada!
Sindsprev/RJ – Num mundo marcado pelo uso intensivo de redes sociais e ferramentas digitais de comunicação, tem sido cada vez mais intensa a utilização dessas ferramentas para a divulgação de notícias falsas (fakenews) sobre variados assuntos, incluindo a pandemia da covid-19. Notícias sobre remédios milagrosos para a covid-19 têm circulado com intensidade cada vez maior nas listas de watsap e telegram. Outras notícias divulgadas sobre a covid-19 são negacionistas, algumas delas afirmando, sem qualquer base científica, que a pandemia não seria tão grave assim. O próprio presidente Bolsonaro chamou a covid de ‘gripezinha’. O que fazer para nos precavermos quanto a isto?
Dra. Lia – Este me parece um dos maiores desafios civilizatórios da nossa contemporaneidade. Nesta hora triste é que conhecemos quem verdadeiramente ama seu povo. Infelizmente o presidente se elegeu com apoio significante de notícias falsas (fakenews). Essa é uma nova modalidade para a qual não estamos ainda preparados, mas já colhemos os frutos podres dessa possibilidade de exercício do poder. Gastamos tempo e energia preciosa para desfazer o malfeito.
Antes dizíamos que a população pobre, analfabeta, era responsável pelo atraso político do Brasil. Agora temos ao menos alfabetizados digitais, que estão trazendo muito mais prejuízo do que aqueles iletrados, que não sabiam sequer assinar seus nomes e não tinham culpa por isto. É uma outra forma de ignorância, muito mais perigosa e perversa, porque é propositiva, participativa, não digo que seja plenamente consciente, mas que dá vazão a pulsões mórbidas, pulsões de morte, a perversões. Poucas vezes vimos na história moderna algo parecido, o que se observa em situações de anomia social, como vimos acontecer na Alemanha, na década de 30. Uma grande crise civilizatória que traz um novo paradoxo. Ao mesmo tempo que se desenvolvem tecnologias úteis, as mesmas têm uma face obscura, fetichista para o micro e o grande poder. Há uma elevação do narcisismo, do individualismo e de dificuldade com o outro, dando vazão à discriminação, ao racismo, à exploração do incapaz, como vemos crescer com a pornografia envolvendo crianças e a prática da pedofilia. Temos uma banalização da morte e da violência. Do ponto de vista demográfico e epidemiológico, vemos que nos EUA, por exemplo, é nas regiões que apoiam Trump que há mais usuários de opiáceos e onde estão as maiores manifestações contra o isolamento social na pandemia do Covid-19. Trump também se elegeu e sobrevive com base nas notícias falsas (fakenews). E isto não é uma coincidência, é uma forma nova de dominação. Isto já está identificado, e são muitas as evidencias das tragédias que provoca. A solução? Precisamos convocar a sociedade, para resistir, esclarecer, orientar, organizar redes capazes de contrapor, de neutralizar. Teremos que desenvolver essa nova forma de luta, regulada por uma ética de proteção e de bem-dizer. A justiça precisa agir de modo precaucionário e preventivo sobre esse problema, precisamos de um novo estatuto legal que regulamente as redes sociais frente às fakenews.
Sindsprev/RJ – Uma proposta que vem sendo defendida por conselheiros de saúde e profissionais é a adoção da chamada fila única de regulação para todos os leitos de UTI, incluindo, obviamente, os leitos da rede privada, cuja ociosidade é muito maior que na rede pública, onde a disponibilidade de leitos já praticamente está chegando a zero. O que a senhora acha desta proposta?
Dra. Lia – É urgente fazer esta regulação e este ordenamento. O Ministro Nelson Teich tem de se posicionar, e a sociedade exigir, se organizar, ir à luta por esse direito. Esta é uma boa bandeira de mobilização social e de fortalecimento do SUS. Ir à justiça por esse direito. Temos elementos na Constituição para tal, mesmo porque a rede privada está regulada como complementar no SUS. Temos que peticionar ao STF, mas também levar ao parlamento. A Espanha fez isto com muito sucesso. Não escaparemos de mais este embate pela vida e pela saúde, que é um direito de todos. Achei muito estranho e até vexatório observar uma verdadeira propaganda (nas mídias) sobre as UTIs dos hospitais Einstein e Sírio-Libanês, ambos de São Paulo, e estes a darem as diretrizes para o enfrentamento da pandemia, como se de fato estivessem disponíveis para a população ou fossem as autoridades sanitárias daquele estado. Na verdade, uma sutil usurpação da imagem do SUS, para seus interesses privados.
Sindsprev/RJ – Fale um pouco mais de sua formação e trajetória profissional
Dra Lia – Sou médica pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, turma de 1974, com Mestrado e Doutorado pela UNICAMP, especialista em Pediatria, Saúde Pública, Medicina do Trabalho e Psicanálise. Tive uma trajetória profissional intensa e diversificada, na capital de São Paulo, em Cubatão, Santos e outras cidades da Baixada Santista, e estou em Pernambuco nos últimos 25 anos. Sou pesquisadora aposentada do Instituto Aggeu Magalhães (IAM), da Fundação Oswaldo Cruz (PE), e também docente aposentada da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco. Continuo atuante no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública do IAM, com linha de pesquisa em saúde ambiental certificada no CNPq.