Jair Bolsonaro (sem partido) continua fazendo de conta que nada está acontecendo, que não tem nada a ver com o mar de lama descoberto pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Genocídio no Ministério da Saúde na gestão do general Eduardo Pazuello, a chamada farra das vacinas. Mas a cada novo depoimento vão surgindo mais informações que confirmam o envolvimento do presidente no escândalo de corrupção para a compra de milhões de dólares em vacinas, com pagamento antecipado, em contratos fraudados, intermediados por empresas privadas para a aquisição, em muitos casos, pró-forma, de imunizantes dos mais variados laboratórios.
São muitas informações, mas, resumidamente, era um negócio rasteiro, sem floreios, nem sofisticação, coisa de quem acreditava fechar negócio, sem ser descoberto, com empresas ‘amigas’, que receberiam antecipadamente, por milhões de vacinas que nunca chegariam ao Brasil. Afinal, em meio ao desespero em que o país se encontrava, quando o esquema começou a funcionar, em novembro de 2020, com quase meio milhão de mortos e a pandemia se disseminando rapidamente, quem iria se incomodar com o fato do governo ter passado a se empenhar na compra das mais diversas vacinas?
Do esquema participariam somente gente da confiança de Bolsonaro: militares ocupantes do alto escalão do Ministério da Saúde, entre eles o titular da pasta, o general Eduardo Pazuello; o líder do governo Ricardo Barros (PP-PR); empresas privadas, algumas, inclusive, sem histórico em transações com vacinas, como a World Brands, cujos representantes aparecem, em março último, em vídeo ao lado de Pazuello, que anuncia negociar com a empresa contrato para o fornecimento de 20 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac, do laboratório Sinovac. Com sede em Itajaí (SC), a World Brands iniciou suas atividades, segundo seu próprio site, como exportadora de madeira, entre outros, da Floresta Amazônica.
O anúncio do contrato era uma farsa desmentida pela própria Sinovac que classificou o vídeo como ‘uma fraude’, frisando que o único representante autorizado a fornecer a vacina ao Brasil é o Instituto Butantan, de São Paulo. O documento comprometeu ainda mais Pazuello. O contrato total era de R$ 4,65 bilhões, pela cotação da época. Cada dose sairia por US$ 28 (R$ 140,28), o triplo do preço pago à Sinovac pelas vacinas fabricadas pelo Butantan, a partir da matéria prima, o Ifa, fornecido pela farmacêutica.
Como funcionava o esquema
O esquema era esse. Simples e descarado. Anunciava-se um contrato a ser assinado, intermediado por uma firma brasileira, com vacinas que poderiam ou não chegar ao país, com pagamento antecipado a uma terceira empresa envolvida, geralmente de fachada e com sede num paraíso fiscal.
O esquema poderia ter obtido sucesso, se a CPI do Genocídio não tivesse sido instalada e descoberto o que seria apenas a ponta do iceberg do esquemão corrupto em que Bolsonaro estaria metido até o pescoço: a compra da vacina indiana Covaxin, do laboratório Barath Biotech, por US$ 15 (R$ 75,25) a dose, a mais cara até então. Só como comparação, a da Pfizer custou US$ 10 (R$ 50,17), mesmo valor da Jansen; a Astrazeneca, US$ 3,60 (R$ 15,85); e a Coronavac, R$ 58,20.
O contrato para aquisição da Covaxin seguiu a mesma lógica dos demais que passaram a ser firmados a partir de novembro: foi intermediado por uma empresa privada, ligada a Ricardo Barros, a Precisa Medicamentos, e não diretamente com o laboratório – como ocorreu em todos os casos anteriores. A Precisa tinha como sócio Francisco Maximiano, proprietário de uma velha amiga do líder do governo, a Global Gestão em Saúde. Em 2018, a Global recebeu pagamento adiantado do Ministério da Saúde durante o governo de Michel Temer (MDB-SP), quando o titular da pasta era Barros para o fornecimento de R$ 20 milhões em medicamentos para doenças crônicas.
A entrega nunca chegou a ser feita. Tanto a Global, quanto Barros estão sendo processados.
O formato do esquema atual, portanto, parece ter surgido na gestão de Barros, quando era ministro da Saúde. O dinheiro para o pagamento à Precisa, pela ‘compra’ da vacina Covaxin, no valor de R$ 1,6 bilhão, chegou a ser separado no orçamento, mas não se concretizou em função das investigações. A CPI descobriu que o pagamento antecipado, no caso da aquisição da Covaxin seria de R$ 222, 6 milhões, a serem creditados a uma terceira empresa, a Madison Biotech, firma de fachada, com sede no paraíso fiscal de Cingapura, para dificultar as investigações sobre o caminho do dinheiro e os envolvidos.
Bolsonaro se empenhou pessoalmente no negócio, tendo prestado satisfações ao primeiro-ministro da Índia, e colocado toda a diplomacia brasileira para agilizar a transação. Chegou a editar Medida Provisória premeitindo a importação de vacinas mesmo sem a autorização necessária da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), caso em que se encontrava a Covaxin, desde que autorizada pelo órgão responsável do país sede do laboratório fabricante. O presidente está sendo investigado pela Polícia Federal por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) por ter prevaricado, ao ser informado sobre a negociata em abril pelo chefe do setor de importação do Ministério da Saúde, Luis Ricardo Miranda, e por seu irmão e deputado Luis Miranda (DEM-DF), e não ter mandado investigar.
Propina
Já a empresa dos Estados Unidos, a Davati, aparece como intermediadora da venda de 400 milhões de doses de um novo lote da vacina AstraZeneca. Seu representante, Luis Dominguetti, disse à CPI que o diretor de Logística do Ministério da Saúde, o ex-sargento da Aeronáutica, Roberto Dias, teria cobrado propina de US$ 1 a mais por dose.
Na compra da Sputnik, a intermediária era a União Química, que venderia a dose do imunizante por US$ 11,5, US$ 2 acima do pago pelo consórcio de governos estaduais no contrato firmado diretamente com o laboratório.
O detalhe é que a União Química pertence a um empresário que já doou dinheiro ao PSD, partido do Centrão; tem o ex-deputado do Centrão, Rogério Rosso, como diretor; e como lobista o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). O contrato fechado pelo Ministério da Saúde com a União Química foi assinado pelo então diretor de logística, Roberto Dias, no dia 12 de março de 2021. Na época, Eduardo Pazuello ainda comandava a pasta.
O mesmo modus operandi foi usado para assinar o contrato de compra de uma outra vacina chinesa, a Convidência, da CanSino Biologics.
A empresa intermediária que negociou com o Ministério da Saúde foi a Farmacêutica Belcher, fundada em 2011 em Maringá (PR). A cidade foi onde Barros começou a sua vida política como prefeito. A negociação envolvia 60 milhões de doses a um custo de US$ 17 cada uma. Um dos sócios da Belcher é filho de um empresário próximo de Barros.
A negociata compromete ainda mais Ricardo Barros e empresários apoiadores de Jair Bolsonaro, líderes de um movimento, iniciado em maio deste ano, que sumiu do horizonte com a CPI, mas que defendia a liberação da compra de vacinas da covid pelo setor privado, o que acabou não se concretizando. Entre os líderes do movimento figuravam os empresários Luciano Hang, proprietário das lojas Havan, Carlos Wizard, fundador da rede de ensino de idiomas Wizard, e o paranaense Emanuel Catori, diretor presidente da Belcher Farmacêutica do Brasil.